“Eu fui a primeira travesti do Programa. Mas, além de ser a primeira, o que eu acho que não é um mérito, eu não tive muita escuta de muitas pessoas. O que me ajudou a permanecer foi a rede criada entre corpos dissidentes, que não eram nem trans nem travestis, mas eram pessoas em suas dissidências raciais que me acolheram e entenderam minhas dificuldades”. O relato é de Noá Bonoba (foto), a única travesti a cursar mestrado ou doutorado em mais de 15 anos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ela não entrou no doutorado por cotas, porque essa possibilidade não lhe foi dada. Hoje, Noá avalia a ampliação da política de ações afirmativas para pessoas trans e travestis na pós-graduação como uma conquista histórica. “Até para que outros programas se espelhem e entendam que é possível ser feito”, afirma a doutoranda.
A reserva de vagas específicas para pessoa trans e/ou travesti – uma no mestrado e uma no doutorado – foi efetivada pelo PPGCom/UFC após a Comissão de Ações Afirmativas do programa ter solicitação aprovada pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG) da universidade. Assim, a política de cotas já existente nos cursos foi ampliada já para a seleção deste ano.
As inscrições estão abertas até 25 de agosto para formação das turmas cujas aulas iniciarão em 2024. Estão sendo ofertadas até 17 vagas no mestrado (11 para ampla concorrência e seis para ações afirmativas, sendo duas para negros(as), duas para indígenas, uma para pessoa com deficiência e uma para pessoa trans/travesti) e até oito vagas no doutorado (quatro para ampla concorrência e quatro para ações afirmativas, sendo uma para negro(a), uma para indígena, uma para pessoa com deficiência e uma para pessoa trans/travesti).
Endossada por professores e estudantes do PPGCom, as cotas para pessoas trans/travestis no programa estão sendo consideradas um avanço importante e necessário. “Além do preconceito, a falta de formação profissional é um sério agravante da ausência de pessoas trans no mercado de trabalho. Elas acabam em subempregos ou mesmo no desemprego e, assim, ficam expostas a vulnerabilidades socioeconômicas e riscos de morte. Garantir a entrada e a permanência dessas pessoas na universidade, que existe para ser um espaço de inclusão e não de exclusão, é permitir que elas tenham a chance de um futuro diferente do que nosso país hoje as impõe, que é uma expectativa de vida média de apenas 35 anos. Não é mais possível nossa sociedade ignorar a realidade dessas pessoas. A ampliação das cotas para pessoas trans e travestis no ensino superior é urgente”, afirma o membro da Comissão de Ações Afirmativas do PPGCom e aluno do doutorado, jornalista Bruno de Castro.
Hoje, de acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), apenas 0,2% dos/das estudantes de ensino superior do Brasil são trans e/ou travestis. Trata-se de um número alarmante, que contribui para um processo de marginalização dessas pessoas e, no Ceará, ganha contornos mais delicados pelo fato de o estado ter o maior número do país de assassinatos de pessoas LGBTQIAPN+, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. O Brasil é há 14 anos líder mundial de assassinatos dessas pessoas, especialmente de homens e mulheres trans e travestis.
“Criar políticas afirmativas é reconhecer a desigualdade de travestis e transexuais. É urgente. É uma política que precisa ser implementada numa perspectiva de construção de saber, que a nós é negada”, afirma a pesquisadora Dediane Souza (foto). Militante histórica do movimento LGBT do Ceará e dirigente da Rede Trans, instituição nacional que representa essas populações, ela cursa Doutorado em Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), instituição na qual ingressou este ano graças às cotas para pessoas trans e travestis.
Por isso, pensar as políticas de ações afirmativas no Brasil hoje configura-se como uma reparação à dívida do Estado brasileiro com os grupos sociais historicamente postos à margem dos processos econômicos, políticos e sociais. “Enquanto ativista de direitos humanos e estudante de pós-graduação, sei muito do desafio que é construir ciência dentro da universidade, que ainda tem nas suas estruturas todo tipo de violência. A universidade é um espaço social e um espaço de disputa. Então, temos que construir a possibilidade de garantir a permanência dessas sujeitas nesse ambiente. Essa tem que ser uma pauta cada vez mais urgente, de a universidade ser para todas as pessoas”, complementa Dediane.
Esses avanços, ainda que pequenos, refletem um cenário em transformação no Brasil, a exemplo das discussões promovidas pelo Poder Legislativo Federal, que agora se debruça sobre proposta da deputada federal Érika Hilton (PSol-SP) para criação de cotas destinadas às pessoas trans no ensino superior brasileiro. Apesar da ausência dessa legislação específica, diversas universidades públicas já compreenderam essa necessidade e incluíram essas populações na política de ações afirmativas. É o caso da já citada UFRN, Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade de São Paulo (USP), Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade do Estado Amapá (UEAP), Universidade de Campinas (Unicamp), dentre outras.
Na UFC, além do PPGCom, somente o Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) oferta vagas para a população trans e travesti, em política também implementada este ano e para a qual as inscrições já encerraram. A instituição tem, ao todo, 86 PPGs.
“A universidade aprendeu comigo. Com o meu corpo. Com a minha presença. Porque meu corpo é pedagógico. E minha produção contribuiu com muitos dispositivos legais favoráveis à população trans. Mas precisamos avançar ainda mais. É importante perceber que quando uma de nós ocupa a universidade, a universidade também ganha com a nossa presença. Porque vai aprender a conviver com mais uma singularidade que tem que ser respeitada. Por isso, a iniciativa do PPGCom de garantir cotas para pessoas trans não é um privilégio. Mas sim de uma reparação histórica da negação dos nossos corpos dentro da universidade”, afirma a primeira travesti doutora do Brasil e professora da Unilab, Luma Andrade.
COMO SE INSCREVER PARA O PPGCOM
Período de inscrições: de 1º de agosto a 25 de agosto de 2023.
O edital está disponível no site: https://ppgcom.ufc.br/
A pessoa interessada deverá, obrigatoriamente, preencher o formulário eletrônico disponível no endereço http://www.si3.ufc.br/sigaa/public (aba “Processos Seletivos stricto sensu”). No final da inscrição, o sistema apresentará um campo para a anexação de um único arquivo em formato PDF contendo o Projeto de Pesquisa.
No ato de inscrição no processo seletivo, as pessoas candidatas que concorrerão na modalidade de reserva de vagas para Políticas de Ações Afirmativas devem apresentar, além da documentação pessoal, um termo de autodeclaração étnicoracial ou de identidade de gênero (a depender da categoria na qual irá concorrer).
No caso das pessoas trans, é necessária ainda declaração de reconhecimento. Para indígenas, é necessária também declaração de pertencimento emitida pelo grupo ao qual a pessoa pertence, com o documento assinado por liderança étnica local devidamente legitimada. Já pessoas com deficiência devem apresentar laudo médico que ateste a condição.